quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Antiga vizinha


"A morte tornou-se vizinha e rondava-me. Costumava bater em minha porta antes da meia noite. Oferecia chá e café e queria ter-me de conselheira. Sempre que ia a frente mostrava meu futuro. Quando me fazia olhar para trás abanava com o véu de minha cegueira em suas mãos. Quando andou ao meu lado senti seu hálito, energia e poder. Amiga, ela nunca me tocou. Enquanto fora minhha vizinha, não a temi."

Eu tinha a morte de vizinha por meu próprio modo de vida. Não era a morte que havia se instalado ao meu lado e sim eu que havia passado a morar ao seu. Viver ao lado da morte é uma prática nossa, dos dependentes químicos, quando permitimos, mediante o uso, a atividade da nossa doença. Nós nos mudamos para a casa ao lado da casa da morte. Cruzamos por ela toda hora. Bebemos no mesmo bar que ela e pegamos droga no bico que ela frequenta. Fumamos a mesma marca de cigarro e preferimos os mesmos ambientes. Quando usamos, nós a procuramos, e não ao contrário como pensam alguns.
Na atividade da nossa doença, é com a morte que compartilhamos a seringa do pico no ligeirão na casa do parceria. É a morte que passa a segundona da lata fumegante. É atrás da morte que vamos quando, apesar de não aguentar mais usar, usamos só mais um pouco.
Morte, antiga vizinha. Ainda cruzo por ela, mas muito raramente. Eu me mudei pra outra casa, já há algum tempo. Foi escolha minha. Eu decidi. Claro que não posso dizer para a morte por onde ela pode ou não pode andar, aliás, não posso dizer isso a ninguém. Mas eu pude me afastar dela, retardar a possibilidade do seu toque. Desta maneira, serei tocada pela morte no tempo de Deus e não mais no tempo do Diabo, como eu arriscava a cada instante e a cada uso, na época que eu tinha a morte como minha vizinha.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Dias negros

Dias negros aqueles. Tormenta, trevas, sujeira. Defeitos de caráter estimulados, crescidos e aumentados. Eu vivi no inferno. Vivia incertezas diárias e só tinha um objetivo. Usar mais. Fosse mais uma dose ou a saidera, o importante e necessário era estar fazendo uso. Quando não tinha mais, o objetivo era adquirir. Quando tinha era usar. Um círculo doentio de busca, compra e uso. Não se saía desse carrossel de auto-destruição. Quanto mais eu usava, maior ficava minha tolerância à substância e mais ativa minha doença. Mais era a palavra chave. Mais gramas necessárias, mais doses diárias. Mais horas acordada, a milhão. Mais gastos. Mais destruição física, mental e espiritual. Mais velocidade, mais vontade. Os dias se emendavam e as noites eram, ou muito longas, ou curtas demais. Sem meios termos. Tudo eras ou não eras. Ausência total de equilíbrio. Concentração apenas no que se referia ao uso. Planos magníficos eram bolados em segundos. Estratégias dignas de um bom e maluco filme de ficção surgiam como uma estrela cadente, riscando forte o céu, marcando a retina, surprendeendo e impressionando, mas ao mesmo tempo tendo um fim tão rápido quanto sua aparição. Para fazer mais uso, passava na cabeça todas as opções possíveis e pensáveis, cabíveis ou não, lícitas ou amorais.
Dias negros aqueles em que eu não me amava. A cada uso um pouco mais de destruição. A cada uso uma roleta-russa. O que deveria durar 100 indo a 10 ia a 1000... Dias negros aqueles.
Hoje estes dias fazem parte de um passado de lembranças que me ajudam a manter-me como estou hoje, em recuperação. Lembrar-me das loucuradas, do constante suicídio, do nada em que eu havia me tornado, fortalece minha vontade de continuar em sobriedade.

sábado, 6 de novembro de 2010

Decisão

E está tomada a decisão mais importante da minha vida. Manter-me sóbria a qualquer preço. Esta decisão me mantém viva. Cada momento, cada instante. A cada 24 horas que eu decido manter-me sóbria tenho um leque infinito de possibilidades nas minhas mãos. Tudo posso, basta querer. Esta decisão é diária e as vezes precisa ser tomada várias vezes durante um mesmo dia. Por exemplo, hoje pela manhã, logo após acordar, fui invadida por uma insuportável vontade de beber. Esta vontade era muito forte. Sentia como se eu não pudesse sobreviver este dia se não fizesse uso de bebida alcólica. Então eu, após um breve conflito de vozes em minha cabeça, tomei a decisão de que nas próximas 24 horas eu poderia fazer qualquer coisa, execto fazer uso de qualquer substância que alterasse meu humor. Funcionou, só por hoje. Consegui manter-me sóbria por mais um dia, no dia mais importante da minha vida, mantive-me sóbria no dia de hoje.
Amanhã, não importa como eu me acorde, tenho uma decisão importante a tomar. A decisão que vai salvar minha vida. Com a ajuda do meu Poder Superior, do meu padrinho, de companheiros de irmandade e de um programa perfeito e maravilhoso de 12 passos, vou tomar a decisão certa. Vou decidir que por mais um dia, por mais 24 horas vou manter-me limpa e serena, sóbria. Vou decidir viver. Minha decisão será a favor da minha vida. Mais 24 horas de boas decisões a todos os leitores.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Só por hoje..

Os dias passam, coisas diversas acontecem. Não há um dia igual ao outro. A cada amanhecer coisas novas, novas possibilidades, novos caminhos se mostram. Ter a oportunidade de traçar o próprio rumo e tomar as próprias decisões é imensamente prazero para mim. Eu tudo posso na minha vida, desde que eu me mantenha sóbria. Esta nova concepção de vida é tudo para mim. Se tornou o modo como penso, vivo e ajo. Recuperação: vivê-la, sentir seus frutos.
Mas não é só de alegrias que vive um adicto em recuperação. A vida tem suas várias facetas. Dificuldades sempre vão existir, porém encará-las de frente e vivendo em sobriedade é a melhor maneira possível e cabível. Em momentos de dificuldade a voz da doença tenta falar e manipular para que se faça uso da substância tal.. para sentir-se melhor, para diminuir o peso do problema, pode-se ter um milhão de desculpas diferentes e tentadoras. Permitir essa voz falar torna mais difícil a caminhada em abstinência, principalmente com pouco tempo na vida sóbria. Eu costumo calar essa voz, não permito deixar que ela me seduza. Seu timbre, dentro de minha cabeça, é doce, meigo. A voz é tão querida.. mas não permito que fale, não para mim, só por hoje.
Essa voz manipuladora costuma visitar meu pensamentos quando está tudo bem demais também. Em momentos de alegria intensa e satisfação vem uma vontade de celebrar... E essa vontade é de celebrar com um copo na mão, na maioria das vezes. O só por hoje entra de sola nessa vontade, me ajuda a não enlouquecer. Não beber nunca mais é um fardo pesado demais para mim, inconcebível. Então só por hoje, lembrando que hoje é o dia mais importante da minha vida, não vou tomar aquela dose inicial de bebida alcólica, que desencadearia a atividade da minha doença novamente, trazendo o inferno aos meus dias.