quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Antiga vizinha


"A morte tornou-se vizinha e rondava-me. Costumava bater em minha porta antes da meia noite. Oferecia chá e café e queria ter-me de conselheira. Sempre que ia a frente mostrava meu futuro. Quando me fazia olhar para trás abanava com o véu de minha cegueira em suas mãos. Quando andou ao meu lado senti seu hálito, energia e poder. Amiga, ela nunca me tocou. Enquanto fora minhha vizinha, não a temi."

Eu tinha a morte de vizinha por meu próprio modo de vida. Não era a morte que havia se instalado ao meu lado e sim eu que havia passado a morar ao seu. Viver ao lado da morte é uma prática nossa, dos dependentes químicos, quando permitimos, mediante o uso, a atividade da nossa doença. Nós nos mudamos para a casa ao lado da casa da morte. Cruzamos por ela toda hora. Bebemos no mesmo bar que ela e pegamos droga no bico que ela frequenta. Fumamos a mesma marca de cigarro e preferimos os mesmos ambientes. Quando usamos, nós a procuramos, e não ao contrário como pensam alguns.
Na atividade da nossa doença, é com a morte que compartilhamos a seringa do pico no ligeirão na casa do parceria. É a morte que passa a segundona da lata fumegante. É atrás da morte que vamos quando, apesar de não aguentar mais usar, usamos só mais um pouco.
Morte, antiga vizinha. Ainda cruzo por ela, mas muito raramente. Eu me mudei pra outra casa, já há algum tempo. Foi escolha minha. Eu decidi. Claro que não posso dizer para a morte por onde ela pode ou não pode andar, aliás, não posso dizer isso a ninguém. Mas eu pude me afastar dela, retardar a possibilidade do seu toque. Desta maneira, serei tocada pela morte no tempo de Deus e não mais no tempo do Diabo, como eu arriscava a cada instante e a cada uso, na época que eu tinha a morte como minha vizinha.

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